O cantor e compositor Vitor Ramil compartilha suas lembranças das Copas do Mundo, as memórias da família e as emoções causadas pela seleção canarinho
Publicado em 28/12/2022
Atualizado às 20:14 de 24/04/2023
Durante a Copa do mundo do Catar 2022, o Itaú Cultural publica A Copa é nossa, uma série de textos em que artistas compartilham suas relações e memórias com o futebol e o torneio.
por Vitor Ramil
Nasci em 1962, ano de Copa do mundo e do bicampeonato do Brasil. Naquele momento, minha mãe era muito mais interessante que qualquer coisa, então perdi todos os jogos e a grande comemoração. Mas a partir de 1970 não perdi mais nenhuma Copa. Sempre pela televisão. A única que saiu um pouco do script foi a de 2006, na Alemanha. Não porque eu estivesse em Berlim para um show e tenha ido aos estádios ver tudo ao vivo. Não. No máximo assisti a um ou dois jogos em algum bar pela indefectível TV. Depois saí a viajar por outros países com a Ana Ruth, minha mulher.
Embora, como em 1962, eu tenha perdido quase tudo, vivi em 2006 uma das maiores emoções em Copas. Foi no dia da final. Eu e minha companheira desde os 18 anos estávamos em Veneza naquele inesquecível 9 de julho. Durante os 120 minutos de Itália x França, decidimos sair a caminhar pela cidade. De repente nos demos conta de que as ruas e os canais de Veneza estavam absolutamente desertos. O jogo deve ter sido emocionante, mas garanto que não foi nada comparado ao que vivemos. Veneza deserta, só para nós! Talvez tenha sido uma experiência única no mundo, porque não cruzamos com ninguém enquanto o jogo durou, nenhum turista, nenhum morador. Apenas nos chegavam sons de multidões invisíveis. Mas, sim, a emoção foi paralela à Copa e se deu, com licença, em outro século.
Se eu tivesse que eleger a Copa do mundo que mais me emocionou por si só, escolheria a de 1970. Não preciso dizer nada sobre aquele time lendário. Eu tinha 8 anos. As lembranças são vagas, algumas talvez inventadas. Mas são poderosas. E têm três cores: preto, branco e dourado. O dourado era dos detalhes na estrutura de metal da nossa televisão. O preto e o branco eram de suas imagens. Ainda não havia transmissão em cores no Brasil. Tínhamos uma grande e pesada Orbiphon e a dignidade de não cobrir o vidro abaulado de sua tela com plástico colorido.
Não preciso dizer nada também sobre a apropriação das cores da bandeira brasileira e da camisa canarinho pela extrema direita em anos recentes, tampouco justificar a náusea que a distorção de seu significado passou a me provocar. Graças a ela, cheguei a 2022 certo de que não conseguiria torcer pela seleção brasileira. Seria a primeira vez. O que antes representava coletividade, criatividade, genialidade ou alegria era agora sinônimo de individualismo, ignorância, crueldade e destruição, para ficar só nisso. Se me provocava tamanho mal-estar, que sentimentos a mundialmente célebre camiseta amarela não despertaria hoje em dia em seu criador, o amigo e admirado escritor, professor e desenhista Aldyr Garcia Schlee? Em 1953, aos 19 anos, ele realizara a façanha de criá-la para que o Brasil tirasse de cima o peso que a antiga camiseta branca ganhara após a derrota para o Uruguai no chamado Maracanazo, em 1950. Com o tempo, tornara-se crítico ferrenho do mercantilismo no futebol e dos desmandos na Confederação Brasileira de Futebol (CBF), sem jamais disfarçar sua profunda desilusão com o mundo sombrio da bola, que, involuntariamente, sua criação solar passara a representar. Às vezes parecia querer tirar o peso da camisa canarinho de cima de si mesmo.
Seu biógrafo, Geraldo Hasse, em livro ainda inédito, conta que, durante a Copa de 1950, Schlee desenhava todos os gols que ouvia pela Rádio Sarandi, de Montevidéu, na narração de Carlos Solé. Segundo o biografado, aqueles desenhos o fizeram exercitar a imaginação com a qual engendraria seu mundo literário ficcional. Com o advento da televisão, e sua grande evolução tecnológica posterior, suponho que o Schlee tenha se acostumado a ver seu amarelo cada vez mais canarinho sobre gramados cada vez mais verdes em imagens cada vez mais reais que a realidade. Seu tempo acabou em 2018. Mas, se tivesse vivido uma prorrogação, como reagiria à surrealidade social e política de que a camiseta da seleção brasileira passou a ser um emblema? Acho que ele deixaria isso para depois. Antes de mais nada, reclamaria do juiz e das regras por ser obrigado a continuar em campo em tais circunstâncias. Depois, amava tanto o futebol que daria um jeito de acompanhar os jogos sem sofrer. Evitaria as ruas, isolando-se com sua amada Marlene no sítio que mantinham no Capão do Leão. Voltaria a sintonizar seu rádio a válvula nas ondas uruguaias? É possível. Sem dúvida, torceria pela Celeste, como fizera a vida inteira, embora o que mais temesse fosse ter de expor seu coração numa final entre Brasil e Uruguai.